A hierarquização e consequente validação de determinados saberes em detrimentos a outros historicamente subalternizados suprimiu dos circuitos de difusão musical, dentre os quais a escola está inserida, os sistemas musicais indígenas, africanos e afrodiaspóricos, a música das comunidades rurais, para citar apenas exemplos mais próximos da realidade do nordeste brasileiro. Esse processo está fundamentado no estabelecimento do eurocentrismo e sua consequente criação do “outro”, no cientificismo iluminista, no racismo, no colonialismo e na ideia de modernidade.
Há uma incoerência, ainda pouco questionada na maioria dos espaços formais de promoção da educação musical, entre seus referenciais majoritariamente eurocentrados e sua inserção em uma realidade onde a diversidade cultural é uma marca definidora. As referências musicais, performáticas, rítmicas, os instrumentos, as técnicas, os sistemas de composição, as escalas e as inumeráveis experiências de transmissão musical das tradições afro-indígenas, compõem complexos epistemológicos ricos e contraditoriamente ocultados.
Nossa vivência com mestras, mestres e brincantes de Reisado de Congo desde 2003, brincando e tocando, aprendendo e dialogando, nos dá segurança para compreender que o universo musical desses grupos consiste num acervo diversificado de saberes que são estudados também na educação musical, mas a partir dos referenciais eurocêntricos da música ocidental. A quantidade e diversidade melódica das peças cantadas, dos acompanhamentos rítmicos, a riqueza e vigorosidade percussiva, os sistemas de afinação das pareias de pife e das violas de reisado, os cantos a duas vozes, a variedade de combinação de síncopes, a ligação entre corpo e música nos passos de dança, a ligação do jogo de espadas com as noções de andamento e compasso, enfim, o Reisado de Congo é campo vasto de conhecimentos musicais que, além do exposto, é parte da cultura cearense, componente da identidade cultural de muitos dos nossos alunos e alunas e de transmissão extremamente lúdica, intuitiva, corporal, inclusivo e acessível, o que nos trás um referencial que não desmotiva os estudantes por ser de difícil execução ou por ser distante sócio-culturalmente.
Sendo assim propomos uma formação que instigue a interação com mestras e mestres em atividades educativas, promova objetivos demandados nas leis 10.639/03, 11.645/08, 13.278/16 (complementada pela resolução 02/2016), 13.842/06 e 16.026/16, valorize os saberes musicais africanos, afrodiaspóricos, indígenas e das comunidades rurais como referenciais válidos para a educação musical, tendo como foco a riqueza epistemológica, estética e metodológica dos saberes do Reisado de Congo para o fortalecimento da identidade cultural local, da luta antirracista e da promoção das relações étnico-raciais.